Discurso de Antero Coelho Neto em homenagem a Galba Araújo
Senhoras e Senhores:
Estamos aqui reunidos para inaugurar esta obra magnífica, para realizar a 3ª Conferência Municipal de Saúde, para consolidar a proposta do Plano Municipal de Saúde, para buscar os caminhos da melhoria das condições de saúde e da vida no Município e também dizer para todos: "Beberibe te amo". E se tudo isso fôra pouco, ainda estamos entregando prêmios a diferentes homenageados e enaltecendo uma das figuras maiores da Medicina cearense e do país, com prestígio internacional na área da saúde materno-infantil, o Professor Galba de Araújo.
E sobre esta última homenagem é que me farei o responsável.
Tarefa muito fácil e extremamente grata para mim. Quis o destino que eu e Galba nos encontrássemos várias vezes durante a nossa vida com laços de parentesco, afetividade, amizade, cooperação e convivência.
Assim, creio ser conhecedor suficiente da personalidade e dos atos deste ilustre médico social, para que os seus mais importantes predicados e realizações sejam destacados, neste momento tão importante para todos os que conheceram e foram amigos de Galba Araújo.
Dotado de uma extraordinária força interna e determinação de realizar coisas modernas, inovadoras, diferentes e até contestadoras na medicina, ao regressar em 1945, após um período longo de residência e aperfeiçoamento em obstetrícia nos Estados Unidos, logo depois de sua formatura na Faculdade de Medicina da Bahia, passou a assumir uma posição de liderança em Fortaleza, justamente por essas suas qualidades. Nessa época estimulavam-lhe os avanços tecnológicos, a medicina mais avançada, o parto mais técnico e científico, a clínica do mais inovador e a dor mais perfeitamente sedada farmacologicamente.
Foi rápido e veloz no seu progresso como profissional trabalhador e muito capaz. Muito cedo transformou-se em um dos maiores obstetras da Capital e seu trabalho passou a ser conhecido em todo o país. A implantação do parto sem dor foi um grande êxito e suas demonstrações técnicas e científicas lhe asseguraram rapidamente um papel importante na obstetrícia nacional.
Como uma de suas características pessoais mais significativas ressalto o seu estilo de vida esportivo, sadio e extremamente vinculado com a natureza. Como um famoso pescador e caçador, verdadeiro descendente de índio que era, encontrava como passatempo predileto as viagens pelos interiores do Estado e do país, ocasiões em que estava sempre em contato com o povo pobre e necessitado. São deliciosas as histórias que contava de suas andanças e experiências com os caboclos, suas mulheres e seus partos.
Sua origem em uma estável e honrada família, sua descendência e sua formação, explicam, em parte, toda a sua personalidade de luta pela vida de uma maneira destemida e vigorosa. Galba não tinha medo de nada, pelo menos não das coisas que nós costumamos sentir.
Mas parecia que algo lhe faltava na sua vida profissional, apesar do sucesso econômico e grande repercussão no meio médico como um grande obstetra.
Foi quando, em 1975, então diretor da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC) e professor de obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, verificou que um grande número de parturientes do interior do Estado procurava a Maternidade para tratamento obstétrico, acompanhadas por parteiras empíricas ou tradicionais. Também comprovou que elas se mostravam muito preocupadas e interessadas por suas amigas, demonstrando um verdadeiro mecanismo psicológico de dependência e de relacionamento parteira-parturiente. E mais do que isso, comprovou a excepcional atitude de honestidade, interesse e dedicação, sem buscar vantagens financeiras e somente parecendo cumprir com as determinações sociais da comunidade ou, algumas vezes, desígnios superiores.
Preocupou-se então quando evidenciou que a maioria das mulheres que eram trazidas pelas parteiras, também chamadas de curiosas, apresentavam complicações obstétricas agravadas pela demora no deslocamento por falta de transporte ou pela inexistência de meios técnicos para uma assistência a nível local.
Não sei como o problema evoluiu na sua mente e também não sei como o processo de verdadeira "desdiferenciação" científica se processou. Como o seu "eu" tecnológico, científico e produto de uma sofisticação adquirida em grande centro médico americano, acrescida de sua condição como professor catedrático de uma Universidade e médico famoso das granfinas da Capital, converteu-se em um médico do social, da comunidade desamparada, do pobre do interior, da medicina alternativa, do procedimento completamente adequado e tudo o mais que gerou-se a partir de então.
Não sei como o "bruxo" ou "feiticeiro" que existe dentro de cada um de nós, e muito mais dentro do Galba, apareceu e explodiu.
De repente, o homem-ciência conseguiu conviver com o homem-feiticeiro de uma maneira , nem sempre harmônica, mas muito produtiva.
E todo um enorme programa de atenção ao parto, uso adequado da tecnologia, estímulo aos medicamentos caseiros e respeito às tradições locais e manifestações religiosas, foi idealizado por ele e desenvolvido com a ajuda dos outros aprendizes de feiticeiros que acorreram em busca de algo que não sabiam muito bem o que era, no princípio da coisa.
E já em 1975 criava o famoso programa Materno-Infantil com treinamento de parteiras empíricas, com o parto normal domiciliar e identificação das gestantes de alto risco, através de um trabalhoso e difícil mecanismo de convencimento ao público, aos políticos, autoridades e, principalmente, a classe médica.
Rapidamente começou a agir, a lutar e a tentar convencer a muitos, de suas verdades(?), de seus princípios e de suas intenções. Guaiuba e Lagoa-Redonda ficaram famosas pelos excepcionais êxitos alcançados no início de suas atividades.
O sucesso do programa espalhou-se e autoridades e líderes locais de diferentes comunidades carentes passaram a procurar Galba no sentido de que fossem incorporados e, ao longo do tempo, dezenas de pequenas maternidades casas-de-parto, foram instaladas em consórcio com as comunidades e prefeituras locais. Centenas de parteiras empíricas foram então treinadas e capacitadas para o atendimento ao parto normal em casa. Era muito mais um treinamento no que elas "não deveriam fazer" do que propriamente "no que fazer", uma vez que quase todas já desempenhavam suas atividades desde há muitos anos e já sabiam a arte e, mais importante, tinham o tempo, o carinho, a dedicação e amizade que, muitos de nós médicos já não dispomos mais para com os nossos pacientes.
E muita coisa mais o Galba desenvolveu no seu programa, indo desde a sua famosa mesa de parto para as parturientes realizarem os seus partos na posição sentada, à divulgação do chamado parto na residência e utilizando bancos de parto, conhecidos em toda uma parte de nosso interior mais primitivo, o desenvolvimento dos curandeiros e rezadores como agentes de saúde e a mobilização dos diferentes agentes de saúde das várias comunidades. Esta última estratégia serviu de modelo para o atual programa do Governo do Ceará que alcançou enorme êxito e reconhecimento mundial.
Em 1980 passa a chamar o Programa de PAPS (Programa de Atenção Primária de Saúde), consegue o extraordinário financiamento da Fundação Kellogg, podendo então estender as diferentes atividades para outras áreas. Foi quando eu passei a conviver e a ajudar o Galba em suas idéias, na coordenação do programa e nas suas ambições de maior comunicar e divulgar o programa. E como eu, nessa época, era consultor da Fundação Kellogg para o Brasil conseguimos realizar todo o desenvolvimento que Galba imaginava para o Programa de uma maneira lenta, eficiente e constante..
Depois, mudaram-se as siglas do programa para PROAIS (Programa de Ações Integradas de Saúde), e outras estratégias foram incorporadas com repercussão internacional, até o ano de 1984 , quando, inesperadamente o grande lutador falece.
Posteriormente o Programa continua nas mãos de seus assistentes e seguidores já com outra sigla, ainda com muita garra e empenho, e com o financiamento da Kellogg, até este ano quando parece que também acompanha o seu criador, desaparecendo. E a velha história se repete, quando os criadores se ausentam de suas criações, como também tenho presenciado muitas vezes em minha própria vida de criador de organizações. Mas nós dois, nisso tenho a certeza de ter a aprovação de Galba para dizer aqui, sabemos muito bem da verdade que há naquela frase de Heminngway quando disse que "o homem não foi feito para ser vencido, ele pode ser destruído, mas jamais vencido". Destruído Galba teria sido, mas não vencido.
O que Galba fez por esta querida Beberibe são vocês que tem de ressaltar e eu creio que esta solenidade e reverência à sua pessoa é uma demonstração do carinho e do agradecimento que vocês demonstram por ele. Em nome de sua família e no meu próprio quero agradecer esta ocorrência. Sei o quanto ele estaria contente se aqui estivesse com vocês todos.
Mas eu seria injusto, pecaria no mínimo por esquecimento, se não deixasse aqui a minha palavra de engrandecimento e reconhecimento sobre a participação ativa e constante na vida e nas ações desenvolvidas por Galba, de sua esposa Lorena, talvez uma cearense maior do que muitas outras que existem, e que sempre ajudou e estimulou todos esses sonhos e realidades de seu querido marido médico-feiticeiro.
E menos ainda, seria insuficiente se não ressaltasse para vocês, como de essencial importância, o papel desempenhado pela equipe que Galba conseguiu organizar e que, com uma força extraordinária tentou, lutou, sofreu e realizou durante e após a sua vida.
E para finalizar, em meu nome e de todos os que trabalham na medicina social, aproveitando esta feliz oportunidade, quero deixar a minha gratidão pelo momento que tenho de reconhecer o trabalho de um inovador, de um líder e de um simples agente da saúde, José Galba de Araújo.
Antero Coelho Neto,
· Em 3.12.93, por ocasião da Inauguração do Centro de Convenções de Beberibe durante a 3ª. Conferência Municipal de Saúde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário